16/04/08

O direito ao afecto: Bons tratos e resiliência

O sistema de protecção das crianças e jovens em Portugal representa um avanço significativo no cumprimento dos direitos das crianças e dos jovens.
O sistema baseia-se no fortalecimento da relação familiar, da família actual enquanto realidade afectiva e de sentimento da responsabilidade.
Historicamente, só a partir do sec. XVIII, pelo menos aparentemente, as crianças passaram a ser encaradas pela sociedade como crianças. Mas o sofrimento infantil prolongou-se até aos dias de hoje e só na segunda metade do sec. XX a legislação contemplou direitos fundamentais para a protecção e o desenvolvimento das crianças: 1959 – Declaração dos Direitos da Criança, 1989 – Convenção dos Direitos da Criança e em 1999, a Lei 147, lei de promoção e protecção dos direitos da criança. A lei 147 consagrou o direito ao afecto. Assim, na alínea c) do artº 3º, nº 2, de forma negativa, define o que não devemos deixar de dar à criança: está em perigo a criança que “não recebe os cuidados ou a afeição adequados à sua idade e situação pessoal”.

Todas as crianças devem receber os cuidados necessários a fim de lhes assegurar a vida, o bem estar e um desenvolvimento harmonioso ao mesmo tempo que os seus direitos sociais, económicos, cívicos e políticos são respeitados, permitindo-lhes o desenvolvimento das suas potencialidades para que todos tenham as mesmas possibilidades de viver, ser livres e felizes. (J. Barudy).
O que está na origem dos comportamentos perturbados não é apenas a presença de maus tratos mas também a ausência de bons tratos. Não podemos continuar a olhar para a prevenção e para a protecção apenas quando na interacção pais-filhos existem marcas físicas evidentes de que alguma coisa falta ou se degradou.
Porém, é necessário ter em conta não apenas a vulnerabilidade aos factores de risco mas também a resiliência. A vulnerabilidade compreende a predisposição ou susceptibilidade para que surja um resultado negativo durante o desenvolvimento. A resiliência é a predisposição individual para resistir às consequências negativas das situações de risco e desenvolver-se, mesmo assim, adequadamente.
Por outro lado, os factores de risco e de protecção são estudados de forma sistémica nos níveis individual, familiar e ambiental.
O ponto de partida dos bons tratos às crianças é a capacidade dos pais para responder às necessidades infantis de cuidado, protecção e educação.
Os bons tratos à criança asseguram o bom desenvolvimento e bem estar infantil, base do equilíbrio mental dos futuros adultos.
A criança tem necessidade de cuidados especiais… A criança precisa de cuidados de educação e de que os pais sejam bons pais (Bettelheim).

Jorge Barudy fala na "biologia do amor" querendo significar que as pessoas são mais importantes do que as ideologias, os objectos, o dinheiro.

Na dinâmica desta “biología do amor”, qualquer criança com as suas características, fazem dela um ser único, e considerada intrínsecamente igual a todas as outras crianças.
"Toda a acção ou omissão cometidas por indivíduos, instituições ou pela sociedade em geral, e toda a situação provocada por estes que privem as crianças de cuidados, de seus dereitos e liberdades, impedindo um pleno desenvolvimeto, constituem, por definição, um acto ou uma situação que entra na categoría do que nós chamaremos maus tratos ou negligencia”.[1]

“As perturbações do comportamento, e eventualmente, as psicopatologias, aparecem como um dos resultados das histórias de crianças maltratadas, das relações familiares gravemente carenciadas ou do confronto com acontecimentos da vida traumáticos”.

Boris Cyrulnik [2] refere a insuficiência de ter um filho biológico sendo necessário dá-lo ao mundo colocando à sua volta os tutores do desenvolvimento.
Uma vez nascido, o bebé, segundo provoque prazer ou não no adulto, vai desencadear neste reacções diferentes que, por sua vez, vão realizar ou não o seu desenvolvimento.

A vinculação à mãe processa-se em condições seguras em 65 por cento dos casos, no entanto, em 5 por cento dos casos é desorganizada provocando assim um desregramento desestruturante para a criança.
Também um acontecimento ofensivo pode surgir, colocando em jogo as instâncias biológicas, emocionais ou históricas do psiquismo. As circunstâncias de um trauma não são, pois, excepcionais.

A resiliência é um processo ... não é um catálogo de qualidades que um indivíduo pode possuir. É um processo que, do nascimento até à morte, nos liga sem cessar com o meio que nos rodeia...

O ponto de partida dos bons tratos às crianças é a capacidade dos pais para responder às necessidades infantis de cuidado, protecção, educação, respeito, empatia e apego.
Os bons tratos à criança asseguram o bom desenvolvimento e bem estar infantil, base do equilíbrio mental dos futuros adultos.
A falta de competência e de consciência dos pais, demasiado ocupados com problemas profissionais ou sentimentais provoca danos a seus filhos fazendo-os pagar as suas carências e insatisfações.
Estes maus tratos, às vezes inadvertidos, causam traumas infantis, transtornos de apego e outros sintomas de comportamento que manifestam o sofrimento invisível nas crianças.
As instituições têm uma particular responsabilidade para de forma compreensiva e de bom trato no âmbito escolar, da justiça ou da atenção social possam reparar muitos danos e devolver às crianças a sua capacidade de resiliência e confiança no mundo, no mundo dos adultos.

Os bons tratos são o cumprimento do direito ao afecto e os maus tratos a ausência ou a violação desse direito.

Apesar da legislação, o que acontece é que se deve perceber o que está em jogo. Assim, Dulce Rocha [4] critica a legislação porque pode provocar sofrimento à criança ao desvalorizar a importância das relações afectivas quando não dizem respeito à família biológica.
Deveria ser introduzido o princípio da prevalência das relações afectivas e não apenas da família que já está prevista.

É neste sentido que ontem foi tornada pública a proposta do IAC sobre a clarificação do conceito de superior interesse da criança. "Neste documento propõe-se a consagração legal expressa do direito da criança à preservação das suas ligações psicológicas profundas e à continuidade das relações afectivas gratificantes e de seu interesse, direito reconhecido com base no aprofundamento dos conhecimentos científicos actuais".
Sem dúvida, que é com grande esperança, que se apoia a iniciativa do IAC, no sentido de deixar expresso na lei 147 este direito da criança.
O texto O Superior Interesse da Criança na perspectiva do respeito pelos seus direitos que refere as alterações propostas e a sua fundamentação pode ser consultado em
[1] Bettelheim, B. (1994) – Bons Pais, O sucesso na educação dos filhos, Bertrand Editora. (Orig 1987)[2] Barudy, J. – O sofrimento invisível das crianças 
          [2] Cyrulnik, B. - Essa Inaudita Capacidade de Construção Humana
          [3] Dulce Rocha , "Lacuna na lei pode provocar sofrimento nas crianças", Agencia Lusa, 22.11.2005

10/04/08

(In)disciplina, delinquência ...


“O ditado popular «Quem rouba um tostão, rouba um milhão» é falso
Claro que alguns jovens delinquentes reincidem na idade adulta, tornando-se bandidos e divorciam-se por completo da sociedade. Para esses, o provérbio está certo, mas os reincidentes, segundo as estatísticas mais pessimistas, constituem apenas 25 a 30% dos jovens associais.
Existe uma tendência para a sedação do comportamento dito associal e a maior parte dos jovens marginais acabam mais dia menos dia por «encaixar-se». A proporção aumenta quando se aplicam aos jovens tratamentos que visam a longo prazo o desabrochar da personalidade, em vez duma supressão imediata das perturbações. E a simples comparação do número anual dos delitos, mais de mil vezes superior ao número dos crimes de sangue, deveria tranquilizar os pais que pensam do seu filho: hoje é ladrão, amanhã será assassino”.

S. Tomkiewicz e col. – Adaptar, marginalizar ou deixar crescer, A Regra do Jogo , pag. 86

06/04/08

(In)disciplina

 
“… A indisciplina constitui hoje, juntamente com o insucesso escolar, o problema mais grave que a escola de hoje enfrenta em todas os países industrializados.”

A indisciplina “ ao quebrar as normas da aula e da escola, interfere altamente no processo pedagógico, pois, para alem de afectar a aprendizagem do aluno, tira tempo útil ao professor compromete a sua performance e obriga-o a desempenhar papéis que ele não gostaria de desempenhar.
Daí a fadiga e outras perturbações psicossomáticas, daí os sentimentos de impotência, frustração, irritação e desejo de fuga à tarefa que afectam muitos docentes”

M. T. Estrela, Relação Pedagógica, Disciplina e indisciplina na Aula, pag. 98

(In)disciplina

"É verdadeiro o seguinte provérbio: usado na língua popular boema : uma escola sem disciplina é um moinho sem água.
Efectivamente se se tira a água a um moinho, ele pára necessariamente, assim também se na escola falta a disciplina , tudo afrouxa.”
“Com efeito, que é a disciplina senão um processo adequado de tornar os discípulos verdadeiramente discípulos”.

Coménio, Didactica Magna, Pag 401

“Um óptimo método de regular a disciplina é-nos ensinado pelo Sol, o qual ministra às coisas que crescem:
1.sempre, luz e calor;
2. frequentemente, chuva e vento;
3. raras vezes, raios e trovões, embora estas coisas tenham também a sua utilidade”.

Coménio, Didactica Magna, Pag. 405

“Houve até um grupo de mestres ingleses que fizeram um protesto público declarando que, se fossem abolidos os castigos, eles seriam demitidos de seus ofícios porque não poderiam educar sem castigos.
Oh! Os castigos ! não me ocorreu que fosse uma instituição indispensável, dominante na vida de toda a humanidade infantil. Todos os homens crescem sob esta humilhação.”

Montessori, M. - Formação do Homem

“Surge uma pergunta irreverente:
-- Por que deve uma criança obedecer?
A minha resposta é:
-- Ela deve obedecer para satisfazer o desejo adulto de poder. Se não fosse por isso por que deveria uma criança obedecer ?
--Bem –diz você – ela pode molhar os pés se desobedecer à ordem para se calçar, pode mesmo rolar de um rochedo abaixo, se não obedecer ao grito do pai.
Sim, a criança deve obedecer quando a questão é de vida e morte. Mas quantas vezes a criança é castigada por ter desobedecido em questão de vida e morte ? Raramente, se chegou a sê-lo. Geralmente abraçam-na, dizendo:
-- Meu tesouro ! Graças a Deus, nada te aconteceu !
A criança é castigada , quase sempre, pelas coisas pequenas”

A. S. Neil, Liberdade sem medo